quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Guerra do Som: exército de vagabundos X exército de corruptos

Recentemente teve início em Curitiba uma verdadeira caça às bruxas com a polêmica condenação da música ao vivo nos bares e restaurantes da cidade, alguns chegando a ser fechados por este motivo, como o Beto Batata do Alto da XV. Não me manifestei sobre o assunto antes porque não considero minha opinião algo imparcial, visto que, como esses músicos que tocam na noite, também ganho a vida através da arte. Porém assisti uma acalorada discussão sobre o assunto e me senti ofendida quando um político, cujo nome não será citado, mas que defende a proibição total de música ao vivo em qualquer bar ou restaurante (ele está inclusive propondo um projeto de lei pra que isso aconteça), chamou a classe artística de "vagabundos".  Mas essa parte da conversa vamos mencionar adiante, primeiro vamos nos ater na "Lei do silêncio". 

Só quem já morou ao lado de um bar ou casa noturna pra saber o quanto isso pode ser irritante. Você trabalha a semana toda e no fim de semana, quando finalmente tem um tempinho pra relaxar, é privado por sons e baderna. Mais de uma vez chegaram a urinar na porta da minha casa. Todo domingo de manhã era abrir a porta e se deparar com lixo e algumas coisas nojentas, como preservativos usados, pelo caminho. Sim, eu morei por mais de um ano ao lado de um bar, eu entendo a reivindicação dessas pessoas. 

Por outro lado, sou filha de um músico que tocou muito tempo na noite e que chegou a ter um bar. Sempre o acompanhei, desde criança e uma coisa posso dizer com orgulho: em quase cinco anos os vizinhos nunca reclamaram do barulho no restaurante do meu pai, mesmo tendo música direto. E olha que a gente não tinha isolamento acústico. Na verdade o isolamento acústico chamava-se bom senso. Uma coisa que aprendi com meu pai durante esses anos é que o bom músico toca em um volume agradável, que permita uma conversa civilizada entre as pessoas que estão ouvindo, afinal, você vai pra um bar pra encontrar os amigos, não pra ouvir bate estaca e sair com dor de cabeça, pra isso existem as casas noturnas, os shows de rock, onde ninguém precisa conversar, só curtir o som.

Outra conclusão que tirei nesses anos todos é que o maior incômodo não vinha da música em si, essa você até releva desde que o volume não esteja exageradamente alto, o grande problema é que onde tem bar tem bebida, onde tem bebida tem gente, onde tem gente bebada tem falta de educação, barulho e imprudência no trânsito (sério, custa deixar pra queimar o combustível da sua Harley no motoclube? É sacanagem ficar acelerando a meia noite na frente da minha casa!). O grande vilão da história aqui me parece ser o próprio ser humano, que não se contenta em ouvir um som e bater um papinho com os amigos em um volume razoável, ele tem que extrapolar, ir até as últimas conseqüências, porque ele é jovem, ele é o tal, a ele as regras não se aplicam. Mas isso vem de casa. Isso se chama EDUCAÇÃO. Entender que meu direito vai só até onde começa o do outro.

Pois bem, agora vamos a grande polêmica: vizinhos e botecos podem coexistirem? SIM, mas vai exigir sacrifícios dos dois lados. Isolar acústicamente os bares funciona, porém é um investimento grande e dependendo do local até desnecessário, visto que bastaria um pouco de bom senso dos músicos pra baixar o volume depois das 23 horas (vou repetir: show e música ao vivo são duas coisas diferentes e aqui eu estou discutindo só o som ambiente, aquele que você ouve enquanto toma um chopinho e bate um papo com os amigos). Brasileiro tem mania de sair de casa tarde, o que agrava o problema, já que a "festa" começa de verdade depois da meia-noite.

Na minha humilde opinião ambas as partes vão ter que ceder. Os bares que quiserem ter shows de bandas vão ter que investir em isolamento sim, mas o pessoal só da música ao vivo pode muito bem ceder um pouquinho também e baixar o volume, isso é até saudável. Já os vizinhos podem tolerar um pouco de barulho até as 22 horas. E quem poderia auxiliar muito com a algazarra que acontece fora do bar é a polícia e a guarda municipal, que deveria estar presente nas proximidades dos bares até mesmo em função das pessoas que dirigem alcoolizadas.

Agora preciso muito falar sobre o "artista vagabundo". Fico muito triste quando toco nesse assunto porque parece mesmo que os artistas de todas as classes vão carregar esse título pro resto da vida, mas o que mais me dói é saber que a culpa é da própria classe artística. Ou melhor, é culpa dos falsos artistas, que um belo dia acordaram, acenderam um cigarro e disseram: vou ser cantor ou vou ser ator (especialmente este último). E porque o cara tem um violão ou porque fez um curso livre de teatro concede a si mesmo o título de artista e sai por aí difamando nossa classe, enchendo a cara, dando escândalo e culpando a "alma artística torturada". Vai culpar sua mãe por não ter te dado uma educação melhor!

Mas tirando essas maçãs podres no nosso cesto, gostaria de responder a quem pensa que artista é vagabundo com o esclarecimento de alguns fatos. Pra ser um músico respeitável, por exemplo, você precisa estudar diariamente. Pra se formar em piano o aluno freqüenta o conservatório de música, que na maior parte das vezes é pago e não é barato, estudando por 11 anos. Sim, um pianista estuda mais tempo que um médico. Quase o dobro. David Garrett, o violinista mais rápido do mundo, relatou que estuda (sim, ele ainda estuda) de 4 a 6 horas por dia. Um cantor pratica exercícios diários para a voz, cerca de duas horas só de preparação. Um escritor passa 30% do tempo dedicado na criação de um livro só pesquisando. James Franco, ator, voltou a universidade depois de anos de carreira pra aprimorar seus dons. Uma bailarina ensaia 8 horas por dia.

Constantin Stanislavski criou o que considero o melhor resumo da preparação e da profissão de ator nesta citação: "O ator deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar sistematicamente os seus dons, desenvolver seu caráter; jamais deverá desesperar e nunca renunciar a este objetivo primordial: amar sua arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo."

A maior parte dos artistas hoje não consegue só sobreviver da sua arte, especialmente porque a arte não é valorizada, ao contrário da malandragem, essa sim, floresce como nunca. Um dos meus melhores amigos é dentista durante a semana e um dos melhores músicos e criadores de trilha sonora que eu conheço nas horas vagas. Meu ex-namorado é um grande ator que faz sites. Meu pai é músico, multi instrumentista, tem dois Cds gravados, e é dono de uma loja e uma fábrica de móveis. Minha professora da oitava série é uma artista plástica com dois prêmios, mas ainda ensina. Conheço um grande roteirista que desenha puxadores, mas acha tempo pra se aprofundar na profissão. Tarcisio Meira tem fazendas e uma rede de salões de beleza. Ana Paula Arósio se tornou criadora de gado. Marília Pera produz shows sertanejos.

É meus amigos, não é fácil ser artista... A gente faz malabarismo pra conseguir estudar, manter a disciplina e ter uma segunda profissão. 

Se os políticos gostam de afirmar que nem todo político é corrupto, por favor, parem de afirmar que todo artista é vagabundo. Todos nós sabemos que existem exceções à regra nos dois lados. Essa guerra pelo cumprimento da lei do silêncio está só começando, a única coisa que eu peço é que ambas as partes tenham respeito e bom senso na hora de se expressar.